Tuesday, September 11, 2007

Bolinho de Chuva

O cheiro de chuva que exala da terra.
A cozinha da minha mãe é perfumada e eu passo correndo com os braços abertos para absorver os aromas.
No quintal cheiro o meu braço, os meus dedos, cabelos e pernas. A roupa é um bolinho de chuva que a mamãe frita para mim.
Açúcar e canela para mimar meus sentidos e aquecer.
A grama e a terra vermelha molhada da fotografia. Porque do céu caem pequenas gotas de água azul cristalina.

Wednesday, August 15, 2007

A Princesa e o Dragão

Ela era a princesa dos dragões de um reino não tão distante.
A coroa e a varinha de condão pareciam não resistir ao encantamento cotidiano. Quebravam inúmeras vezes e o pai sempre as colava com magic glue. O segundo tubo, veja só.
"E vai colar, papai?", perguntou a princesa de saia jeans e camiseta sem manga.
"Bem, não dá pra saber ainda. Tem que ter paciência e antes, claro, segurar firme e contar até trinta", respondeu o rei.
O dragão de asas curtas esperava calmamente deitado no chão da cozinha recebendo fendas de afago do sol com a sua língua de fogo de fora, inocente.
A cauda que era longa contornava a mesa e a que reinava cantava canções fabulares.
"Agora vem dragão colorir comigo e depois brincar de montar blocos; vem só um pouquinho, tá dia ainda".
Enquanto isso, a varinha e a coroa repousam num reino imaginário.

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Imagem: Isabella Kantek. Local: Long Island Children's Museum, NY

Thursday, July 5, 2007

Leveza

Ela construiu com gravetos, folhas, pedras e brinquedos velhos, uma casa para os bichos do quintal. Eu só podia olhar.
Fez apenas um quarto e idealizou todos juntos: formigas, aranhas-toquinho, joaninhas, pássaros bebês e besouros. Eu disse que a mosca não era besouro, mas só podia olhar.
E passou a tarde conversando, mudando os móveis de lugar e levando os bichos para a escola, montanha, praia ...
O seu mundo era assim, o prolongamento de uma nota ou pausa, de um estado puro, singelo.
E eu, só quero olhar.

Monday, June 11, 2007

Do telefone contemplar

"Alô, papai? Mamãe brigou comigo", disse Beatriz.

"Está tudo bem filha, a sua mãe devia estar cansada. Fizeram felicidades?", perguntou o pai.

"Já fizemos, mas eu fiz um desenho. Dá para ver?", pergunta ansiosa a menina.

"Infelizmente não. Fazemos assim, você me mostra quando eu voltar do trabalho, certo?", propõe o pai.

"Mas olha, estou mostrando por um dos buraquinhos. Claro que dá para ver, papai!", insiste Bea.

"Muito mal, vejo muito mal... Pode me contar o que desenhou?", pede o pai.

"O papel é branco, mas como estava embaixo da caixa de tinta ficou cheio de marquinhas, igual ao vestido de bolinha da Ana na festa junina. Lembra? E então, eu desenhei uma mão pequenininha e pintei de rosa, da cor da flor do jardim da vovó. Mas, você não conta pra ela que eu perdi a flor no caminho, tá bom? Tem uma outra mão, grande, que aperta a mão rosa. E aperta tão forte que quase dá um grito. Fiz um céu, papai. Um céu tão azul, um azul tão bonito que dá vontade de ficar só olhando. Por que que dizem céu de brigadeiro? Mamãe desenhou uma casinha para mim. Na janela fiz nós três e pintei bem assim, com a mão benevolente. Que-que é essa palavra, papai? Achei bonita. Você me explica quando chegar em casa? A mamãe disse que você explica tão poesia essas coisas".

E de longe, do corredor, escuto a voz da Bea. Um eco delicado dos meus pensamentos. Suas pequenas mãos inocentes passeiam pelo fio do telefone e dão laços. Os pés, alvos, dançam rarefeito. O silêncio do pai sentado na cadeira que gira abre um mundo de lembranças afetuosas.

Que há-de ser

Essa flor é para você mamãe. E essa outra é para a bisa. (longa pausa)

Essa é para mim. Para quando eu crescer.

Mamãe, promete que você não esquece de me regar?

Thursday, May 17, 2007

Passeio Inventado

Essa é a história de uma menina que caiu na calçada.

"Ai, doeu", disse ela.

É também a história do seu sapatinho que desapareceu no ar e foi parar no canteiro. Aquele pequeno terreno cheio de verde.

"Poc, poc, poc", foi o barulho que fez.

A mãe da menina vendo que o sapato sumiu, parou a caminhada para buscar o sapatinho. A menina ficou quietinha, alí, esperando. Do outro lado da rua um menino passou correndo de patinete, e ela o imitou com as mãos e os pés. Movimentos arejados. No céu, nuvens brancas de suspiro flutuavam, e ela tentou alcançá-las dando pulinhos tímidos. No solo, formigas catavam pedaços miúdos de folhas e migalhas e levavam para as suas casinhas. Tudo isso a menina anotou na sua cuca de faz-de-conta.
Nada do sapatinho, a mãe estava tendo trabalho para encontrá-lo. E a menina torcia para ela não encontrar. Também torcia para ficar parada alí mais alguns instantes, observando as coisas que correm e que crescem corriqueiras com o tempo dentro da infância de cada um de nós. E então, eis que a mãe aparece sem nada nas mãos e com um sorriso de lado, franzido. Quase sentida e brava com o canteiro que levou o sapatinho da sua filha.
A menina não ligou, pelo menos não demonstrou, e foi caminhando devagar, manquitolando assim, um pé de cada vez. Sentiu as calçadas que eram ásperas e viu a meia cor de abóbora encher de sujeira e pedrinha como devia ser. Como deveria, sentiu a pata dos bichinhos em estado original. As das formigas, das joaninhas, e até as dos tatus-bolinha. O sol de celofane colorido esquentou a planta do pé, que vibrava, experimentando o novo tão diferente.

Sunday, April 8, 2007

A cigarra que não sabia cantar


O pôr-do-sol na vila Canta Galo era de tirar o folêgo. E as crianças da vila sabiam disso. João era o que mais apreciava, tanto que apelidou esse acontecimento diário de "a dança do sol".

Era final da primavera e além do espetáculo celestial havia também a cantoria das cigarras todos os dia ao entardecer. Festa de graça para meninos e meninas.

O ônibus escolar os trazia de volta para a vila no meio da tarde. Tudo sincronizado para que nenhuma criança perdesse a dança do sol e a sinfônia das cigarras. Só dava tempo de chegar, dizer oi para a mãe e deixar a mochila no sofá. Somente isso e já saim correndo para o campo.

Ali ficavam brincando, observando o formigueiro, os grilos saltitantes e as tímidas joaninhas. Algumas crianças sempre traziam um vidro de maionese vazio para catar as cigarras aposentadas e exibí-las em casa.

Naquela tarde João e seus amigos encontraram uma cigarra viva entre a folhagem. A pequena cigarra não parecia estar ferida, mas também não emitia nenhum som, não o famoso som esperado nessa época quente do ano.



Uma das criaças se ofereceu para levar a cigarra para casa porque a mãe era professora de biologia. Outra disse para largar a cigarra no gramado já que ela não cantava. Entretanto, João e a maioria aceitou que a cigarra fosse examinada pela bióloga.

Ninguém dormiu direito naquela noite. Nem pais, nem filhos. Do lado de fora as cigarras cantando, do lado de dentro as crianças murmurando, imaginando. Sem dúvida uma noite longa.

No dia seguinte todos estavam na porta da casa do amigo cuja mãe era bióloga. Todos, inclusive o motorista do ônibus que estava aflito pois as crianças iam chegar atrasadas na aula.

E então, aparece a mãe com a cigarra em uma caixa de sapato com a tampa cheia de furinhos. Primeiro, a mãe pede que o motorista avise a escola que as crianças iam chegar para a segunda aula. Depois, ela acompanha as crianças até o campo.


Essa é uma cigarra muito rara. Ela não sabe cantar, nasceu assim. Existem muitas espécies de cigarras. Algumas são grandes, outras são pequenas. Muitas cigarras têm períodos diferentes de amadurecimento e cada uma emite um som característico.

A cigarra que vocês encontraram é muito especial. E vocês fizeram muito bem em me mostrá-la. Não existe nada nessa terra que seja igual, assim como o pôr-do-sol, a tonalidade do céu, o formato das nuvens... Nós mesmos somos diferentes.

Agora vamos libertar a nossa cigarra antes que vocês cheguem atrasados demais.


No final do dia as crianças de reuniram, como sempre, no campo. Entretanto, ao invés da correria e barulho elas escutaram atentamente a cantoria das cigarras enquanto o sol desaparecia no horizonte. E quando a sinfônia das cigarras terminou e o silêncio tomou conta do momento eles puderam sentir a presença da cigarra que não sabia cantar.